quinta-feira, agosto 24, 2006

Como água para o vinho


A Maria tinha ar de gata, pequena, magra, delgada, ágil, esperta, com aquele olhar reguila. Parecia sempre pronta a mostrar as garras, agressiva e serena, tal era o seu estado de espírito. Dizia que não tinha “papas na língua”, chamava insensato ao mundo e ria-se da sua hipocrisia. Ria-se muito. Quem gostava da Maria venerava-a ou, então, não a suportava de todo. Mas era o seu ar doce que cativava e as palavras incisivas que proferia que faziam não querer sair do seu lado. A Maria era um encosto fácil e confortável, turbilhão de mares. Fez da sua vida exactamente o que queria ter feito, salvo raras excepções. Mas dizia que não. Não que se queixasse ou lamentasse - a Maria tinha saudades do passado e tinha recordações mas dava-lhe muito mais prazer sonhar, sonhar com o futuro e viver o presente. Por isso é que todos, tão diferentes dela, se deliciavam com a sua oratória e os seus longos silêncios, que nos momentos mais críticos logo indicavam que algo corria mal. Diziam que era só treta, sem conhecimento de causa - “Ah! essa Maria, candidata a filósofa.”. Qual quê, a verdade - “Ah! essa Maria, filósofa de facto!”, pois que é a filosofia senão a vida, escrita, falada e pensada!? A Maria era anormalmente comum mas ordinariamente diferente. Falava, enganava-se, chorava, ria, errava, caía, levantava-se, sorria, chorava e falava. Nunca fugia aos sentimentos e talvez tenha sido a franqueza dessa sinceridade que a fez sofrer o desgosto de amor, o qual nunca referia, até porque, achava ela, de uma maneira ou de outra, todos nós já sofremos por amor e todos nós já sofremos de amor. A grande diferença nesse ponto comum são pequenos pormenores sem importância que o destino de cada um se encarregou de alterar. Parecia quase perfeita a Maria, mas humana como os de resto. Houve quem chegasse a duvidar que existisse e fosse ilusão, alento que os tornava melhores, consciência a correr para uma sensatez perdida. Simplesmente Maria, como uma luva sedosa que encaixa perfeitamente na mão fina e branca.




A Marta era a melhor amiga da Maria. Completamente diferentes, como água e vinho, dia e noite, luz e escuridão. Praticamente da mesma idade mas abismalmente distintas em tudo o mais. Marta era loira, a pele clara cobria um rosto sereno com uns grandes olhos cor de mel que denunciavam qualquer emoção. Muito franca, muito indecisa, muito pouco determinada e muito muito desorganizada. Conheceram-se na faculdade, logo no primeiro ano de Direito, nessa cidade de encantos que é Coimbra e a empatia entre ambas estabeleceu-se desde o início. Mais do que simpatia um sentimento de carinho, protecção e amor incondicional desse que só a amizade é capaz de dar conta e de eternizar para o resto da vida.
Pouco sociável a Marta, preferia longos silêncios a ser impelida a participar em debates e conversas em que forçosamente era obrigada a dar a sua opinião. Muito insegura, cheia de não seis, fugia a sete pés de tudo aquilo que implicava tomar partido, tomar decisões. Muito indecisa, cheia de pezinhos de lã para não magoar os outros mesmo que quem tivesse de sair magoada fosse ela quando calhava ouvir o que não gostava. Mas nem por isso caia no erro fácil do "olho por olho, dente por dente" e já que disseste isso ora fica-te com esta! Não era esse o seu estilo, a não ser que dissessem mal de alguém muito querido, como da Maria por exemplo. Aí tornava-se uma fera, mostrando todas as suas garras e unhas e dentes e tudo o que fosse preciso. Muito fiel, cheia de convicções românticas da vida que pintava de tons cor de rosa bebé. Quase etérea, alma que vagueava pela vida dos outros quase imperceptivelmente mas que tornava a vida mais leve, liberta de constrangimentos castradores da felicidade. Quase feliz, cheia de uma tristeza cheia de nada que enchia os seus olhos grandes no rosto distraído por essa luz que vinha não se sabe de onde nem porquê mas que inundava os demais.






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