sábado, setembro 23, 2006

...


Vejo-te ao longe, e tu nem imaginas que te namoro com o olhar. Gosto de estar assim, quieta, passando completamente despercebida, completamente absorvida na tua imagem real diante de mim. Longe, é certo, mas irritantemente próxima. Ou não vivesses dentro de mim...
Observo os teus gestos, e o teu riso. Sei que não sorris para mim mas isso não importa. Não desconfias por um momento que és alvo da minha atenção, que estou completamente agarrada e dependente do sentimento que me despertas. Não preciso de ti mas não dispenso já o que sinto em relação a ti. Não preciso de mais. Muito menos de ser descoberta. Porque o amor basta ao amor.
Parece-me que sabes, mas sempre foste bom a não mostrar o que te vai no coração. Às vezes nem sei se a vida te contemplou com um, dada a tua insensibilidade em relação a certas coisas. Mas não te conheço bem, só o suficiente, que é demais, no meu caso.
Não se trata de um amor não correspondido. Nem poderia ser. Mas a dúvida entreposta entre uma eventual simbiose atrai-me. Parece masoquismo, eu sei, mas não é disso que se trata. Trata-se somente de eu gostar de ti e querer que as coisas continuem assim, tendo eu o monopólio exclusivo deste sentimento que diria impartilhável. Pelo menos por enquanto. Até deixar de ser, se alguma vez o tiver de deixar.
Estás de facto longe. A tua imagem não passa de uma sombra vista daqui que o pensamento aproxima da realidade do que tu és. Não és mais do que uma sombra que preenche todo o horizonte e o faz encher-se de cores. As cores da tua alma que agora saem da tua esfera pessoal e ficam ao alcance de todos. Tenho ciúmes. Quero-te só para mim.
E não é egoísmo. É mesmo assim. Não gosto que te mostres aos outros porque não quero que eles saibam a razão porque te amo. Depois isso passaria a ser domínio público e seria um problema, não?
Beijo-te de longe e confio no vento para que to faça chegar. Rasando de leve a tua face, como um afago sentido em segredo.
Sei que não tarda vais-te embora empobrecendo o meu olhar ansioso e nunca saciado de ti. Então não sei o que vou fazer. Provavelmente sonhar contigo, pois já compreendi que a tua imagem é muito mais forte que o desejo que tenho por vezes de que me deixes em paz.
Se fechar os olhos continuo a ver-te ao longe. Sei-te como que a uma lição decorada, o que não deixa de ser perturbador... Acho que nunca te olhei de perto, receando que o teu olhar possa ler qualquer coisa no meu, que sei que me denunciará, traidor.
Circunstancialmente é assim que penso em ti, com a distância imposta por quem quer evitar acima de tudo surpresas menos agradáveis e o espaço necessário para deixar que as sombras que me complementam possam ganhar forma sem ter medo que um dia se faça luz.

Um sentido chamado sexto


Dizem que o que os olhos não vêem o coração não sente, mas às vezes pressente... Pelo menos ela pensava que assim o era, e pensava tanto que era quase uma certeza isso que tantos chamam de sexto sentido, pertença quase exclusiva do sexo feminino, de parte desconhecida do organismo. Uma adivinhação quase sempre certa, um pressentimento quase nunca refutado pela prática. Uma mais valia. O que quer que seja a verdade é que há olhos que o amor torna cegos e a paixão não deixa enxergar mas ainda assim o coração bate a determinado momento mais forte, torna-se capaz de ver mais longe, onde nenhum olhar pode chegar, determinar factos que aconteceram sem que deles se tenha qualquer certeza, uma espécie de olfacto misturado com tacto, do mais aprofundado que existe na face da terra. Sabe-se e pronto.
Ela sabia-o muitas vezes, por vezes antes de acontecer efectivamente, quase que parecia bruxa não fosse o senso comum atribuir-lhe tal designação. Muitas vezes sentia o coração doente de tanto que conseguia ver. Para lá do amor e da paixão que a cegavam. Talvez porque nunca tenha nenhum tido a capacidade de lhe retirar por completo a noção do espaço e do tempo que o coração lhe confinava e confiava tão bem.
Com um sexto sentido, sabia ler nas entrelinhas do amor o que ele próprio ainda não previra. Sem cair no calculismo. Rasando a previsão. Completamente e inevitavelmente presa a essa adivinhação sem futuro que somente trazia dissabores. Preferia não ter nenhum sentido, nenhum pelo menos denominado de sexto. Abdicaria dele se necessário. Mas nunca foi necessário nem preciso.
Ela tinha essa capacidade quase sobre-humana de nascença, como um sinal que nasce com a gente, daqueles que nos acompanham o crescimento, mas não mudam de cor, mantendo-se na sua essência inalteráveis.
Por tudo isto e tudo isto para dizer que não adiantava mentir-lhe, a não ser para fazê-la rir dessa mancha das almas das pessoas que não são capazes de aguentar dizer simplesmente a verdade. Ela ria-se muito e ninguém percebia bem porquê, mas ela sabia era por isso que ria da mentira alheia. Também sofria, e ela sabia bem que o que diziam, que às vezes vale mais uma doce mentira do que uma dura verdade tinha alguma razão de ser. Apenas não percebia porque tinha de arcar sempre com as verdades, por muito duras que fossem, sem ilusões que lhe facilitassem a existência. Muito terra a terra por imposição da vida. A própria vida que lhe trazia os amores, destruía-lhe os mitos e as nuances cor-de-rosa que lhes tentasse imprimir. Por isso as suas paixões eram, invariavelmente, coloridas de preto e branco, num daltonismo nem sempre sustentável com a maior das levezas. Olfacto e tacto e visão e ouvidos e paladar muito muito apurados... Dotada de nascença com um sexto sentido altamente apuradísssimo, perigosíssimo e tristíssimo.

terça-feira, setembro 19, 2006

Longe/Perto?


Duas almas coladas
E a distância que se estendeu
Fê-las sentir abandonadas
Sem colo, canto nem céu

Mas, as sereias se escutares
Cantam aos ouvidos dos amantes
E basta reparares
Olhando as estrelas brilhantes
Para te lembrares
e em seguida esquecer.

A distância é um nada
Kms de terra gelada
E eu sou tua até morrer

O longe é já aqui
Onde eu vivo
Dentro de ti

Fome

“Mãe, tenho fome!”. Eu sei, eu sei. Coitado do puto, ainda não comeu nada de jeito hoje. Devorou um prato de sopa que devia ter quase uma semana, de certeza que estava azeda, e um naco de pão recesso e nem reclamou. São quase cinco horas, o melhor é dar-lhe qualquer coisita para lanchar, eu sempre posso enganar o estômago com um café e uns cigarros e depois logo se vê. Tenho massa e salsichas, faço um esparguete aldrabado para jantar. O orçamento está limitado, tenho 3 euros e o pai dele não aparece, aquele malandro, saiu de manhã e não disse ai nem ui, pouco me importa desde que traga dinheiro para alimentar o nosso filho, nosso é como quem diz, que ele é muito mais meu do que dele.
Este puto é bestial, nunca está triste e nunca se queixa. Até parece uma pessoa grande, está-me sempre a dizer para não fumar tanto e que gosta muito de mim. Chama-me mãezinha. Noutro dia é que não gostei, quando me disse que devia trabalhar. Trabalhar! Eu quero é que ele estude e se forme para ser alguém na vida e para que tenha da vida mais alguma coisa do que eu, que tirando a ele não tenho mais nada a não ser preocupações.
Quando choro à noite tentando abafar os soluços entre a almofada, não sei como é que ele ouve, mas ouve sempre e vem sempre Ter comigo. Pergunta se pode dormir comigo, eu digo-lhe que já não tem idade mas ele insiste, e eu gosto, claro que gosto de sentir aquele corpo pequenino dono de uma cabecinha tão grande, que ainda posso proteger. É o meu amor, o meu único e derradeiro amor...

A minha mãe ensinou-me a fechar os olhos e a imaginar que estou a comer exactamente o que me apetece. Neste momento, por exemplo, estou a comer um pão com manteiga e imagino o sabor de uma bola de berlim. “Mãezinha, não tens fome?”. A minha mãe come muito pouco, ela diz que não tem fome, mas eu sei que é porque não tem dinheiro. Ainda à pouco a vi contar os trocados que tinha para pagar o lanche e o café, baixinho mas eu ouvi-a. É tão bonita a minha mãe mas está muito magrinha, parece um periquito a comer e trabalha muito lá em casa. Anda sempre com uma tristeza qualquer no olhar, ainda não consegui decifrar a causa mas desconfio que seja pelo meu pai, que nunca está em casa e quando está passam o tempo a discutir. A minha mãe passa o tempo todo a chamar-lhe malandro, a dizer que não tem juízo e “livra-te de seres como ele, que me davas um desgosto!”. Eu quero dar muitas alegrias à minha mãe, quando trabalhar vou encher o frigorífico de comida, nem que seja para ela comer por não resistir à tentação. E vou comprar também um aquecedor que lhe aqueça as mãozinhas que são quase iguais às minhas, para ela não se queixar mais das frieiras no inverno e possa costurar à vontade.
Eu sei que o dinheiro lá em casa não é muito. Sou o mais magrinho e pequenino da minha turma mas não me importo. Além de que nunca passei fome a sério, isso não, a minha mãezinha não deixa, “nem que tenha eu de passar fome”, diz ela e é o que faz, que eu sei. Do meu pai é que não sei nada. Sai de manhã e às vezes passam-se dias em que nem põe os pés em casa, para desespero da minha mãe. Ela que já fuma tanto, nessas alturas então... e faz-lhe tão mal, “tu nunca toques num cigarro, ouviste? Por mim...”. Mãezinha, eu por ti faço qualquer coisa, mas fumar fazia de mim estúpido e isso eu não sou. Acho que devia trabalhar, afinal já tenho nove anos, e sempre ajudava alguma coisa, mas tu dizes sempre que não, “estás tolinho! vais é estudar e tirar um curso, vá promete”. Eu prometo, sim, gosto de estudar e aprender coisas mas...”mas nada. Vais estudar e acabou!”, diz ela.Às vezes, à noite, oiço a minha mãezinha chorar. Vou ter com ela e ela logo disfarça, “constipei-me”, mas eu sei que não está constipada, que está a chorar. Pergunto-lhe se posso dormir com ela, “não estás grande?”, não, e sei que ela gosta, abraça-me e embala-me como se fosse pequenino outra vez, e chama-me "“eu amor"” Às vezes sinto-me muito feliz, muito mais quando ela sorri porque também está feliz... A minha mãezinha fica tão bonita quando sorri!!