sexta-feira, maio 15, 2009



“Devolvo à tarde triste a luz que me entristece,
E vou entristecendo
O largo,
O rio,
O campo
E, mais além, a linha do horizonte.
Mas repreendo os olhos e regresso
À página vazia
Onde, possesso (a)
Aguardo que desponte
A luz de um novo dia.


Um dia alegre,
Limpo,
Singular,
De nenhuma semana,
De nenhum mês,
De nenhum ano,
Miraculosamente amanhecido
Nas sílabas de um verso enfeitiçado,
A ressoar, medido e desmedido,
Na concha do ouvido
Deslumbrado.”

Miguel Torga

terça-feira, maio 12, 2009

De que são feitas as palavras



Por vezes gostava que as palavras fluíssem com naturalidade, na velocidade exacta do que vou pensando, uma conjugação perfeita com o meu dicionário mental. Mas nem sempre isso acontece. Dou por mim a procurá-las nos meandros de pensamentos que voam fugazmente entre aquilo que penso e o que escrevo. Desenhos abstractos da minha alma perturbada com alguma coisa, com o que vai correndo e ocorrendo no e pelo mundo, injusto por sinal, mas quem não o sabe assim? Muitas vezes são silêncios que dão forma ao que vou pensando – abafos de muitos desabafos calados, que a boca não chega a consentir que sejam ditos e que a cabeça esconde subtilmente entre um sorriso ou uma cara de poucos amigos.
E se não existisse qualquer filtro entre o que se diz e o que se pensa ou antes entre o que se pensa e o que se diz. Se houvesse um canal directo e todos fossem como que obrigados a dizer tudo o que lhes ia passando pela mente, nunca cansada de se exercitar? Seria um mundo melhor? Seríamos mais felizes ou, pelo contrário, andaríamos todos chateados uns com os outros porque a verdade magoa e nem sempre os pensamentos sobre as coisas são os mais bonitos? Não há resposta. Nunca haverá resposta porque todos sofremos essa castração primária, incutida quase inatamente, de esperarmos que o pensamento se acalme quando está chateado, se trave quando está feliz e a dizer o mais conveniente. Por isso somos todos muito falsos, não nunca muito falsos, mas falsos na nossa essência social. Por isso se diz que as crianças na sua ingenuidade dizem coisas “engraçadas” quando na verdade apenas enunciam verdades até então veladas, seja lá porque razão for.
As palavras são traiçoeiras, matreiras, perigosas, duvidosas. Nem sempre querem dizer aquilo que dizem, há outros sentidos que lhes estão subjacentes e que nem sempre são perceptíveis. Para entender as palavras no seu todo há que, sobretudo, saber ler nas entrelinhas daquilo que elas nos dizem. Porque as palavras não são meras palavras – engendradas pelo cérebro e verbalizadas pela boca, medeiam-nas todo um conjunto de sentimentos que, como é sabido, nem sempre primam pela coerência. Porque é que quando alguém diz “não gosto mais de ti” o outro, o desgostoso, pede, invariavelmente, a repetição da frase “olhos nos olhos”. Porque a verdade é que as palavras possuem uma frieza que o contacto físico, humano, visual destrona por completo. Por isso é que se opta tanto por dizer as maiores barbaridades ao telefone (como despedir alguém, por ex.), para não ter de enfrentar o olhar (im)piedoso e desarmador do olhar.
De um outro prisma as palavras adquirem uma força coerciva e persuasiva muito grandes. Vejamos os discursos políticos. Neles toda a ordem palavral é invertida no sentido único que se lhe quer dar e no fim todos concordam com o que o “homenzinho” disse. É um discurso apelativo, altamente pernicioso, uma vez que leva o zé povinho a convicções que mais não são do que promessas feitas à queima roupa sem qualquer intuito de um dia se virem cumpridas e convicções tortas que se aparentam direitas num povo ávido em lutar por ideais. Os políticos sabem isso e aproveitam-se desse facto jogando com as palavras, atacando-se mutuamente, mostrando os podres de uns e os fracos dos outros, apelando a grandes paixões. Usam a palavra pátria sem significado algum só porque sabem que é um dito que estremece as ideologias da gentalha sem ideias e ideais para se debater.
Por tudo isto resta dizer que é preciso ter algum cuidado com aquilo que se diz. Digo algum pois se assim não fosse tudo sairia muito certinho, politicamente correcto mas muito pouco verdadeiro. É na beleza de cada palavra que devemos encontrar o mote para construir frases também elas bonitas, plenas de significados, ocultos muitos, evidentes alguns, mas nunca recear dizê-los. Pois como já diz o ditado valem mais cem palavras do que sem palavras, ou antes digo eu, pronto.